Representantes do Conselho de Farmácia contestam venda de medicamentos em vending machines, mas idealizadores defendem a legalidade
O brasileiro já está muito familiarizado com as máquinas de venda de produtos de conveniência – as vending machines – que estão disponíveis, geralmente, em condomínios residenciais e comerciais, estações do metrô e outros locais de grande circulação. Na área farmacêutica, algumas empresas, como o grupo DPSP, já tiveram incursões nesse mercado, oferecendo máquinas com itens de conveniência farmacêutica. Já a aposta da empresa Apêfarma é uma vending machine com medicamentos isentos de prescrição (MIPs). A questão é: vender medicamentos em máquinas estaria de acordo com a legislação brasileira?
O CEO da Apêfarma, Ítalo Motenegro, afirma que seu modelo de negócio atende, perfeitamente, às normativas nacionais relativas ao tema. Já o presidente do Conselho Regional de Farmácia de São Paulo (CRF-SP), Marcelo Polacow; e o conselheiro Federal pelo Ceará, Egberto Feitosa; garantem que a venda de medicamentos nesse modelo é ilegal.
Antes de se aprofundar nessa polêmica, vale lembrar que, globalmente, o mercado de vending machines está em expansão, com volumes atingindo cerca de US$ 30,30 bilhões até 2024, segundo a Grand View Research. Os defensores do segmento garantem que esse modelo de negócio possibilita aumentar a capilaridade de redes varejistas e da indústria.
A praticidade e a facilidade das vending machines são inegáveis, e estão se diversificando com produtos de conveniência, eletrônicos, cosméticos, alimentos etc. No Japão, um dos líderes mundiais em vending machines, há uma máquina para cada 23 habitantes.
Como funciona
Montenegro revela que seu modelo de negócio foi muito bem-estudado e se estruturou baseado em um forte aparato jurídico e técnico sobre a área farmacêutica, o que possibilitou o desenvolvimento de máquinas de venda de MIPs e de conveniência para condomínios residenciais, inicialmente, com possibilidade de expansão para outros segmentos. Seu diferencial, se comparado a outras vending machines, é que a Apêfarma só faz a venda de MIPs após o usuário fazer consulta com o farmacêutico de plantão, que é acessado por vídeo, na própria máquina.
“Desenvolvemos uma tecnologia extremamente rigorosa para validações e compliance, ficando todos os medicamentos bloqueados e em ambiente controlado, monitorados em tempo real (temperatura, umidade, câmeras e livre de pragas). Para a operação rodar, necessitamos 100% dos profissionais farmacêuticos, categoria a que valorizamos muito”, revela Montenegro.
O empresário garante que só podem efetuar compras de MIPs em suas máquinas as pessoas com mais de 18 anos, e acrescenta: “Por meio do sistema desenvolvido pelo nosso time de infraestrutura, para se iniciar a videochamada com o farmacêutico, solicitamos do usuário seu nome, CPF, telefone e data de nascimento, seguindo todos os critérios de LGPD. Após o usuário iniciar o processo, um de nossos farmacêuticos irá atendê-lo, seguindo um protocolo para efetivar a biometria facial e o cruzamento de dados para validar a identidade do comprador. A venda só acontece depois da liberação pelo farmacêutico”.
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Montenegro explica que já foram instaladas duas máquinas em condomínios, uma em Fortaleza e outra em Caucaia, ambas no Ceará. Apesar disso, apenas a venda de produtos de conveniência foi implementada. “Não iniciamos as vendas de MIPs ainda, que estão bloqueados nas máquinas, já que, antes, estamos procurando atuar de forma transparente, mantendo diálogo com todos os órgãos fiscalizadores”, ressalta.
Atualmente, Montenegro confirma que possui uma farmácia física em Fortaleza, com todas as certificações conforme exige a legislação, e que a sua operação, na Apêfarma, faz 100% dos atendimentos diretamente com os seus farmacêuticos, o que contribuirá para a geração de mais empregos para a categoria na medida em que o negócio for sendo expandido.
“No passado, algumas empresas tentaram girar operações de MIPs em vending machines, sem êxito, pois descumpriram diversos pontos da legislação. Em nossa operação, procuramos sanar todos esses pontos por meio da tecnologia e sem nos esquecermos dos protagonistas, que são os farmacêuticos. Estivemos apresentando nossa proposta ao CRF-CE, e estamos abertos a sentar com qualquer outro órgão fiscalizador. Já estamos nos movimentando para diálogos com todos, desde locais como federais”, dispara Montenegro.
Ele entende a polêmica em relação à venda desses medicamentos nos supermercados e defende que seu modelo de negócio não é igual ao que querem esses pontos de venda, pois seu foco é a segurança do usuário e a valorização do profissional farmacêutico, que é soberano na decisão da venda para o comprador na vending machine da Apêfarma.
Afinal, pode vender medicamentos na máquina?
Aqui começa a polêmica, na medida em que os conselhos não concordam com a venda de MIPs fora do ambiente da farmácia, amparados pela legislação.
Feitosa explica que a equipe da Apêfarma mostrou a máquina e o modelo de negócio para o CRF-CE. Ele se mostrou preocupado com a parte legal e revelou que não haveria regulamentação nesse sentido. “Eu, inclusive, levantei um questionamento. Aqui no Estado Ceará existe uma portaria da Secretaria do Estado, da Vigilância Sanitária Estadual, que estabelece os chamados postos de medicamento, que são locais que poderiam vender medicamentos sem a presença do farmacêutico, em uma localidade que não tenha farmacêutico residindo ou farmácia em funcionamento, ou seja, praticamente num sítio, numa fazenda, numa local totalmente isolado, que não é o caso dessa empresa”.
Ele continua: “da forma como eles estavam querendo fazer, a própria Vigilância Sanitária do Estado poderia caracterizar essas máquinas como postos de medicamento. Aí haveria outro entrave, porque o posto de medicamento não pode funcionar na área onde há farmacêuticos”.
Feitosa comenta que a Apêfarma apenas apresentou um modelo de negócios e não está efetuando vendas de MIPs por enquanto. Para virar uma realidade, ele acredita que existe um caminho ainda muito grande a ser percorrido.
“O tema tomou uma proporção na internet, e eu até entendo a polêmica, porque em São Paulo já aconteceu isso, inclusive de uma forma totalmente errada, em que colocaram os MIPs à venda, e a pessoa chegava na máquina e retirava uma cartela de Dorflex, ou seja, uma coisa totalmente contra a legislação sanitária”, fala Feitosa.
O conselheiro ressalta a figura do farmacêutico remoto, que poderia estar relacionado ao atendimento na vending machine, que é a assistência farmacêutica em farmácias realizada remotamente, ou seja, excluindo a obrigatoriedade da presença física do profissional farmacêutico, o que não é permitido. Há também a questão do teleatendimento farmacêutico, que são atividades distintas.
Apenas para elucidar essa questão, a Resolução CFF 727/2022, em seu Art. 2º diz: “Entende-se a Telefarmácia como o exercício da Farmácia Clínica mediado por Tecnologia da Informação e de Comunicação (TIC), de forma remota, em tempo real (síncrona) ou assíncrona, para fins de promoção, proteção, monitoramento, recuperação da saúde, prevenção de doenças e de outros problemas de saúde, bem como para a resolução de problemas da farmacoterapia, para o uso racional de medicamentos e de outras tecnologias em saúde”.
Pergunta: seria um atendimento de telefarmácia, quando a assistência é feita pelo vídeo de uma vending machine?
Feitosa diz que não. “A telefarmácia é uma coisa e o farmacêutico remoto é outra. Inclusive, nós lutamos e derrubamos os projetos de lei que tivemos no congresso nesse sentido. Então, não há embasamento para a questão farmacêutica”.
De toda forma, ele ressalta outro ponto importante: esses medicamentos, embora isentos de prescrição, estariam fora do ambiente da farmácia, e é justamente isso que a legislação não permite. “É exatamente por isso que os supermercados vêm trabalhando tanto para mudar a lei. Então, seja em supermercados, seja numa máquina, os medicamentos têm de estar na farmácia”, dispara.
É ou não telefarmácia?
Já Polacow, que já se envolveu no tema por conta de outras empresas que tentaram implementar, em São Paulo, um modelo parecido, mas sem o apoio do farmacêutico, defende: “Entendo que essa modalidade de venda não está amparada na legislação vigente, e a retirada do medicamento a distância não se encaixa na telefarmácia. A telefarmácia é o exercício da Farmácia Clínica mediado por Tecnologia da Informação e de Comunicação (TIC). Essa prática profissional, bem como, suas modalidades são regulamentadas pela Resolução 727/2022. A norma não abrange atos inerentes à Responsabilidade Técnica (RT) do farmacêutico, como por exemplo, a dispensação de medicamentos”.
Ele afirma que “não há previsão legal para esse tipo de atividade, estando sujeita às sanções sanitárias e éticas por parte do farmacêutico por colocar a população em risco e até mesmo na esfera criminal, por crime contra a saúde pública. Inclusive, em São Paulo, já estamos em contato com a polícia civil para criminalizar, além da empresa, também os síndicos dos condomínios”.
Polacow vê com bons olhos o fato de a empresa estar em diálogos com as autarquias e conselhos antes de colocar os MIPs à venda em suas máquinas. No entanto, quando indagado sobre a relação dos MIPs em supermercados, ele afirma que a venda nas máquinas seria ainda mais perigosa, “pois, algumas propostas de vendas em supermercados ainda contam com a presença do farmacêutico disponível presencialmente. Em máquinas não haverá possibilidade de o farmacêutico estar presente no momento da compra”.
Já Montenegro se defende dizendo que, a cada venda, há sempre um profissional farmacêutico para dar assistência pelo vídeo. Nada sai da máquina sem que o farmacêutico tenha permitido. Ele afirma ter algo extremamente seguro. Por exemplo, ele comenta que qualquer pessoa pode comprar paracetamol na farmácia, inclusive menores de idade. Seria só pegar o medicamento no balcão e se dirigir ao caixa, sem ser abordado por ninguém. “Fato esse que no nosso equipamento não acontece, porque eu não vendo para menores de 18 anos. Eu faço a validação, eu faço o cruzamento de dados”.
Feitosa diz: “naturalmente, nós não somos favoráveis a nenhum tipo de ideia que possa precarizar a saúde pública ou o trabalho dos colegas farmacêuticos. Seja com esse tipo de projeto, seja com qualquer outro tipo de projeto que possa aparecer”.
O Sindicato dos Farmacêuticos do Ceará (SINFARCE), em nota em suas redes sociais, afirmou que avaliou o modelo de negócios da Apefarma em reunião, e que ficou esclarecido que o modelo não segue o formato “pagou, levou”, contando com critérios rígidos para a aquisição de medicamentos e que há a presença de um farmacêutico em formato virtual em todo o processo de compra, que é monitorado e controlado.
“Foi destacado que, para a aquisição de itens da categoria Conveniência, não há necessidade de apresentação de documentos físicos ou digitais. Entretanto, para a escolha de qualquer item da categoria Medicamentos, o consumidor passa por um rigoroso processo de identificação que envolve tecnologia avançada, segurança e compliance, realizado em questão de segundos. Também foi informado que não são vendidos medicamentos que requerem prescrição médica”, diz a postagem.
Montenegro finaliza: “A Apêfarma surgiu com o propósito de trazer oportunidades para a classe. Vejo que alguns profissionais não estão vendo com bons olhos, achando que estamos querendo instabilizar o mercado ou causar polêmicas. Na verdade, estamos pensando o contrário, queremos gerar empregos, impostos, valorizar a profissão dos farmacêuticos e sempre de forma responsável e prudente. Enxergo que tecnologia e pessoas podem andar juntas de mãos dadas”.
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